Flutuando entre alegrias bobas e tristezas bem fundamentadas.

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Das coisas que deixamos para trás e a vida que vem pela frente

Um dia um sujeito acorda aos 50 anos e leva um susto. Não porque já está fazendo 50 anos e esse número ardiloso faz a passagem do tempo lhe parecer tão rápida quando a descida na montanha russa. Não porque tivesse fantasiado que de agora em diante os mais jovens o olhariam pensando “olha, ali vai um homem de 50 anos”. Não porque calcula que chegou aos 50 sem ter se tornado o rei da cocada, o cantor das multidões, um super-herói de história em quadrinhos usando a sunga por cima da calça. Nada disso. Ele se assusta porque abre os olhos e encontra sua casa completamente vazia.

Em franco desespero, ele salta da cama e corre atrás de suas coisas. Seu remédio da pressão, sua escova de dentes, sua garrafa de água! Até a tampa da privada, fria, cinza, limpa, esperando ser levantada todas as manhãs com a dignidade de quem sabe a importância de seu trabalho, não estava mais ali!

Cadê os livros? Cadê as roupas? Onde estão seus documentos e suas fotos? Alguém por favor pare com a brincadeira e devolva já a geladeira e todos os seus imãs de pizzaria a esse homem que já tem tão pouco do que sentir falta.

Na sala de sua casa agora há só as quatro paredes brancas, lisas, sem os quadros e o espelho e os poucos móveis que ali moravam. Ele olha num canto e não enxerga o velho sofá verde-musgo que sua filha amava transformar em cama para encher de farelo de salgadinho. O sofá velho e barulhento que abriu os braços a tanta gente amada. E que teve como último hóspede um velho amigo recém separado que o visitara de madrugada, eles se sentaram ali e beberam a cerveja fresca e a saudade morna de tempos vencidos. Agora o sofá é passado como as lembranças e as garrafas de bebida esvaziadas que a todo ser humano é concedido esquecer pela vida.

Não há mais nada na casa. Ela foi violentamente esvaziada. O homem respira fundo e se dá conta de que, assim como sumira tudo que ali havia, desapareceram também as coisas que moravam dentro dele próprio. Ele se pergunta com o choro engasgado onde está sua família simples e limpa. Onde estão os cachorros da casa da infância, onde está o pé de Araça de sua avó. Pergunta aflito a si mesmo como foi que aquele esfolado feio em seu joelho cicatrizou tão rápido como só poderia acontecer a um super-herói. Teria ele sido atingido por um raio, picado por uma aranha, lambido por uma vaca e desenvolvido estranhos superpoderes? Será que o pai já consertou sua bicicleta e, ai, Meu DEUS, ele esqueceu a lição de casa de novo! Para onde foram suas irmãs pequenas, suas avós, suas tias, seu primos. E por que diabos o seu pai demora tanto a voltar do trabalho?

Ele abre a porta e sai correndo para a rua, deve haver um orelhão de onde telefonar para a polícia, porque seu telefone celular também desaparecera.

Mas a rua está vazia. Nenhum carro, nenhum pedestre, nenhum cachorro fuçando os sacos de lixo, mijando nos postes, correndo atrás de outros cachorros. Nada. Ele caminha meia dúzia de passos, olha para trás e sua velha casa também não está mais ali. Acabou. Ele fecha os olhos, segura o frio em suas entranhas, respira fundo e espera desaparecer também.

No entanto, estranhamente ele continua ali. Abre os olhos, percebe uma nova casa à sua frente e caminha devagar em direção a ela, enquanto ouve um burburinho que aumenta e se multiplica e se transforma no som espetacular da vida que recomeça. A rua, os carros, os pedestres, os cachorros. Todos voltaram ao divino exercício de existir. Ele aperta o passo na direção da nova casa, olha para dentro de suas janelas e descobre que tudo está ali. Suas coisas. Seus documentos e suas fotos, sua geladeira e seus imãs de pizzaria, suas roupas e seu varal. E reencontra sua gente e suas lembranças.

Ele vai até a porta da frente e, antes de entrar, limpa os pés no tapete pequeno como aprendeu com sua avó, olha para trás e vê a casa dos trinta devolvida ao lugar de onde desaparecera, do outro lado da rua. Vê lembranças acenando pela janela, vê pessoas antes desaparecidas nos vãos do velho sofá, vê suas dores e seus amores o empurrando para o mundo aberto.

Então ele se despede da antiga morada, põe os olhos para a frente, abre a porta novinha cheirando a tinta fresca e agradece a Deus pela manhã azul do mundo e as paredes brancas de sua nova casa. Ele entra devagar, pousando o pé direito no assoalho virgem, e caminha firme, novo, resoluto para a vida que começa aos 50.

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