Há alguns meses, eu vivi um grande problema: ter um só problema. Até então, a lista era grande. O barulho da reforma do vizinho, a nota baixa do filho, minha fascite de plantar, pessoas ressentidas, o pote de requeijão sem tampa na geladeira, pressões do trabalho e até desafios mais sérios. Nunca vão faltar razões para reclamar. Todos nós temos no nosso cotidiano contratempos suficientes para preencher a lista. Mas eis que, de repente, a minha normalidade sofreu um curto circuito. Um problema maior instantaneamente absorveu todos os outros. Aconteceu o chacoalhão mais temido, aquele que mexe com a vida de quem se ama. Só uma coisa me importava: o problema.
A vida mudou em poucos minutos. Um vaso sanguíneo do tamanho insignificante de um milímetro teve o péssimo gosto de se romper dentro do cérebro da mulher mais importante da minha vida. Inundou a região afetada de sangue e a família de dúvidas e incertezas. Alguns movimentos paralisados pelo AVC fizeram paralisar também a nossa vida à espera de novas sinapses. Vivemos durante 30 dias, minha mãe e eu, em um mundo paralelo, dentro de um hospital volátil, onde não tem dia e noite, onde a identidade da pessoa é a sua doença e seus atributos variam de acordo com números e imagens de exames.
O cheiro era de remédio, de medo, de esperança. O que é dado como certo não faz parte desse mundo, onde cada passo é uma conquista, uma comemoração. É nesse mundo que habita a verdade nua e crua. É nele que se revela nossa fragilidade, que nos prova que toda a naturalidade da vida é um milagre. É onde a vida se torna mais urgente.
Perder a rotina nos faz perceber o quanto ela é abençoada. Acordar com o barulho do vizinho e não com os bips de medidores de sinais vitais é música para os ouvidos. Se preocupar com a pressão do trabalho e não com a pressão arterial é um privilégio. Tenho a vida toda para resolver as notas baixas, o requeijão duro na geladeira, a fascite. Se hoje você reclamou de mais de um problema, agradeça. É sinal de que está tudo bem.
_becky sarfati korich