Flutuando entre alegrias bobas e tristezas bem fundamentadas.

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Sandália amarela

Acordou atrasada, como sempre, mas dessa vez era diferente. Diferente porque era um dia de não-trabalhar. Mas se era um dia de não-trabalhar, estava atrasada pra que a menina ? Atrasada pra não-trabalhar, evidente. Estar atrasada para não-trabalhar é, na lógica da menina, muito mais grave do que estar atrasada para trabalhar. Para Maryangela a perspectiva de perder um minuto que fosse de um dia de não-trabalhar era especialmente aflitiva, como alguém que perde os trailers no cinema.

(…) Com o nariz quase encostado na parede de seu minúsculo banheiro, Maryangela ouvia como que ao longe o ruído de sua urina batendo na água do vaso sanitário, enquanto fixava o olhar em uma das fileiras de azulejos branco-encardido-lascado que se estendia até sumir atrás da porta cor de bosta. Porque alguém pinta a porta do banheiro cor de bosta, pensava ela pela enésima vez enquanto escovava os dentes. Certa vez um namorado disse a ela que essas tintas cor de bosta eram mais baratas do que o branco-dalas ou o branco-gelo. Ele tinha hálito de bosta e o pau só ficava a meia-bomba… Marcelo talvez, não lembrava direito.

Avisou a memória para se lembrar mais tarde para comprar absorventes. Óleo, sabão em pó e um rodo novo. Repetiu os itens para fixar na memória. Absorvente, sabão em pó, óleo e um rodo novo. Melhor que fosse azeite. Se lembrou também de lembrar mais tarde de não usar os itens de limpeza hoje, dia de não-trabalhar. Não lhe parecia justo.

(…) Olhou debaixo da cama, de volta no banheiro, na cozinha, no guarda roupas e nada da sandália amarela. Tentou se lembrar da ultima vez que a viu com vida. Não lembrava. O seu dia de não-trabalhar estava correndo rapidamente e nem sequer havia tomado café ainda. Sentou-se na cama e de súbito lembrou-se do pau meia-bomba do Marcelo. Riu. Deitou-se na cama e começou a gargalhar, repetindo “meia-bomba, meia bomba, meia bomba.” Achou grande graça de sua graça. Fechou os olhos e viu nitidamente a sandália amarela enfiada atrás da floreira do lado de fora da porta do apartamento. Estava lá desde quando voltou pra casa bêbada caminhando calmamente alheia à chuva que caia copiosamente. Quanto tempo faz isso ? Não lembrava.

Sandália amarela e tiara amarela, pediu um suco de morango com leite e um pão de batatas com manteiga na chapa. Tinha fome pela manhã. Lembrou de seu pai com saudade. Absorvente, sabão em pó, azeite, um rodo novo e um presente pra sua irmã. Por onde andará Marcelo ?

A garçonete veio com o pedido e flagrou Maryangela no meio desse sorriso, momento em que Maryangela teve a suprema revelação de que, com certeza, não existia no mundo ser mais vesgo do que aquela garçonete. O perigo de explodir em uma constrangedora gargalhada era eminente, numa fração de segundos Maryangela abriu sua bolsa e começou a revirar o conteúdo enquanto respirava fundo e repetia mentalmente: “absorvente-sabão-azeite-rodo, absorvente-sabão-azeite-rodo…”. A garçonete perguntou educada e mecanicamente: Mais alguma coisa moça. Aí fudeu. Maryangela soltou um “meia-bomba” meio contido e explodiu numa sonora gargalhada que se estendeu até sentar-se no banco de trás do uber amarelo.

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